Thursday, August 7, 2014

Um orgulho para o país e um pesadelo para a minha mulher

Sempre tive muito medo de ficar chalupa.

Eu, antes demais, sou uma pessoa que tem muitos medos. 
Fantasmas, grandes alturas e camarões estragados são destaques num vasto leque mas não há pavor que me atormente tanto como o de perder o juízo. Claro que pode haver (e garanto que há) quem diga que sou um trombalazana demente que parece ter levado com bordoada em barda pela moleira adentro em criança e eu admito que há nessas palavras algum fundo de verdade. No entanto, posso não ser um exemplo de clareza e lucidez mas estou longe de ser maluco dos cornos.

Um chalupa, no meu entender, é um indivíduo que partiu para onde não o conseguimos seguir. 
É uma pessoa que não tendo de estar confinada a um espaço fechado e sem arestas cortantes nos eleva o espírito por percebermos que, apesar dos problemas do dia-a-dia, ainda pertencemos a este lado da cerca da sanidade. 

É, por exemplo, um sujeito que parava na zona do Saldanha perto da minha antiga residência. 
Bem vestido, de fatinho escuro, mas que trazia sempre numa mão uma garrafa de espumante que levava frequentemente aos lábios e na outra um pau comprido e ameaçador. O seu ambiente de trabalho, digamos assim, dado que costumava lá estar sempre oito horas por dia com intervalo para almoço, era a entrada de um prédio devoluto junto à avenida Casal Ribeiro. Dizia que o prédio era dele e portanto tinha de guardá-lo. Aparentemente, as suas obrigações passavam também por ameaçar os transeuntes de paulada, sempre aos berros como era seu apanágio, mas, quando estava bem disposto, também não dispensava um pé de dança. Nunca percebi se a garrafa de espumante era sempre a mesma ou se era uma nova todos os dias. Também nunca confirmei se continha mesmo a bebida ou era apenas uma espécie de ritual imbecil: se o levar contínuo do gargalo à boca representava uma qualquer simbologia demoníaca de trompeta do Apocalipse. Sei que a dada altura, este chalupa arranjou um leitor de cassetes e já não se apresentava no spot sem phones nos ouvidos. O acrescento pode não ter saciado a sua fome por porrada indiscriminada a desconhecidos mas, façamos justiça, trouxe ainda mais ginga às suas sessões públicas de kuduro

Confesso que às vezes dava por mim a observar este espectáculo dantesco e a temer terrivelmente pelo futuro. O que quer que o mentecapto tivesse fumado ou ingerido andava por aí e podia arruinar-me o cerebelo com tanta eficácia como o fizera a ele... É por isso que ainda não desisti do sonho de me fazer acompanhar sempre por um provador, para passar a pente fino tudo que estará prestes a passar-me pelo goto. Pensei até em andar sempre com o meu gato debaixo do braço para o efeito (até porque, até ver, o diabólico leitão parece não ter nenhuma outra utilidade) mas acho que, só por si, isso já era um passo largo exactamente para o universo que pretendo evitar.

A verdade é que ao longo da minha vida tenho conhecido muitos chalupas e, por incrível que pareça, sempre que sou forçado a travar diálogo com um deles fico extremamente calmo, como se entrasse numa dimensão paralela e quisesse trazer um pouco de rigor e lógica onde não há nenhuma. É apenas uma forma de me enganar a mim próprio e afastar o medo de "virar a boneca", como se a chalupice fosse contagiosa.

Há cerca de um ano, estava eu num bar a festejar o aniversário da minha mulher quando reparei num homem, lá está, bem vestido e apessoado, a fazer uma estranha dança na outra ponta da sala. Eu sei que estranhas danças em bares não chegam para definir alguém como maluco mas este espaço era distinto e erudito e não se coadunava com o agitar frenético de ossadas e articulações que acontecia defronte de um aparentemente sereno (mas claramente em pânico) empregado de balcão. 

A dada altura, constatando que eu não o estava a imitar na sua apalhaçada performance, a criatura virou-se para mim e gritou:

- Então, tu não danças?!

Eu, porque me encontrava sentado e em grupo, e também porque considero a dança uma actividade inatingível ao corpo perro e inútil que tenho, atirei-lhe, lá está, com muita calma:

- Não.

O bicho, não tendo achado a minha resposta satisfatória, replicou com os olhos esbugalhados:

- Porquê?!

Procurando ignorar os risos nervosos dos meus convivas, respondi uma vez mais:

- Porque não gosto.

Foi aí que, sofrendo uma espécie de epifania satânica, o chalupa se aproximou da minha mesa e, balançando as ancas como nunca, berrou:

- É SÓ ABANAR O CU!

...

Em resposta à eloquente sugestão, decidi parar durante uns segundos.

Pensar na minha existência. De onde tinha vindo, para onde pretendia ir, tudo aquilo que me servia de inspiração e me construía a personalidade. Pensar em todos os degraus que subira e as barreiras que contornara até chegar àquele momento. 

O momento em que um desconhecido, agitando-se como louco, me ordenava aos gritos para "abanar o cu".

Respirei fundo.

Pisquei várias vezes para humedecer os globos oculares e, sempre muito tranquilo, voltei a responder-lhe.

- Eu não gosto de abanar o cu.

...

...

Percebi logo que, pela primeira vez, alguma coisa o tinha deixado estarrecido. 

"Alguém que não gosta de abanar o cu?! Como é possível?!"

Ficou a olhar para mim como se sempre tivesse vivido debaixo de água e alguém o houvesse pescado de repente. Como um chicharro a resfolegar à tona.

"Como era possível não se gostar de abanar o cu?!"

Porque considerei bizarro e tremendamente desconfortável prosseguir com a celebração do dia especial da minha mulher à vista desarmada de um lunático petrificado que não estava a conseguir suportar o choque da minha resposta, lancei uma ou duas palavras para o ar. Para forçá-lo a sair do transe.

Tudo o que consegui foi que ele parasse finalmente de efectuar o seu bailado.
O que para mim já foi uma enorme conquista. 

Com um ar mais sóbrio e "terreno", sussurrou:

- Posso fazer-te uma pergunta?

Mau.

Tremi.

Ainda há quinze segundos falávamos em "abanar" e em "cu" portanto qualquer conversa que se seguisse a esta não podia ser de todo agradável ou interessante.

Mas lá está, tenho medo. 
Medo de assumir perante mim próprio que estou diante de uma pessoa que é biruta e que daqui a uns anos posso ser eu a fazer aquela mesma figura diante de alguém mais são. Um tipo nunca sabe o dia de amanhã e são conhecidos os constituintes na minha vida, sobretudo de origem animal de estimação, que prometem levar-me à loucura a cada momento. 

Mas que pergunta poderia ele fazer?!

Se em vez de abanar o cu preferia abanar outras partes do corpo?
Se apreciava barrar-me com manteiga de amendoim a cada quatro horas?
Se quereria ir com ele à Cruz Quebrada adorar um pombo morto?

O QUÊ, MEU DEUS?! O QUÊ?!

Muito hesitantemente, mas procurando manter a calma, fiz um gesto com a cabeça.

Para que me fizesse a tal pergunta.

E ela lá veio. 

Solene.

...

- Já tens calções p'ró verão?

...

...

...

Foi a última vez que frequentei um bar.

E também só a muito custo voltei a vestir calções.

Deus me livre e guarde de chegar a este ponto mas, e apesar dos meus receios, devo dizer que já estive mais longe. É que sem um braço ou uma perna, com todas as dificuldades que isso traz, um homem ainda funciona. Mas a perguntar se as pessoas "têm calções para o verão" segundos depois de sugerir que "abanem o cu" não se vai longe, digam o que disserem.

Além disso, eu tenho tendência para exagerar tudo. 
Portanto se algum dia me der para ser chalupa devo entrar logo para o Top 3 mundial. Um orgulho para o país e um pesadelo para a minha mulher que certamente me daria guia de marcha na hora.

Mas se esse dia chegar...
E se me apanhar com uma garrafa de espumante e um pau nas mãos...
Prometo que a coisa não fica por ali.

Saturday, April 5, 2014

O campeão dos speedo

O meu gato é um imbecil.
Já lho disse muitas vezes na cara.

Não me pesa a consciência assumir isto publicamente dado que estou certo que ele pensa bem pior de mim, desde o dia em que calcou as patas gordas no chão cá de casa. Quem nos conhece, sabe bem que partilhamos o mesmo espaço segundo uma paz que pode estalar em bordoada a qualquer momento. Ele suja, eu limpo. Ele avacalha, eu arrumo. Ele destrói, eu arranjo ou ponho no lixo. O equilíbrio do pardieiro onde moro dispensa as energias cósmicas e os mais básicos princípios do feng-shui... É antes um sério teste ao meu autocontrolo e capacidade de recusar o impulso primitivo de esventrar a vil criatura e sair com as tripas dele ao pescoço, como um colar de missangas.

Enfim, mas não percamos tempo a falar de fait divers...

A verdade é que nos últimos meses, o diabrete sodomita que é o meu gato tem andado irreconhecível na sua doçura e procura de carinho humano. Ele é querer colo a toda a hora. Ele é esfregar o focinho ternamente. Ele é dormir aos pés como um bicho dos filmes da Disney. Só lhe falta cantar!
De repente, esta besta torna-se em tudo aquilo que eu e a minha mulher sonhámos quando o trouxemos cá p'ra casa, uma espécie de "ursinho carinhoso" que não só proporciona bons momentos de lazer em família como ainda se abstém de cometer vilanagens durante o resto do tempo. Nada... NADA... dos traços que vinham a marcar a sua infame personalidade até então.

Posto isto, eu até ficaria contente e, de certo modo, orgulhoso, se não soubesse de onde é que vem esta bondade toda. Se a achasse honesta e livre de interesses. Se não a topasse à légua...

O BEDUÍNO ESTÁ ASSIM PORQUE TEM FRIO!!!

Ora, que vá bardamerda!

A mudança brusca do estado de espírito do meu gato é capaz de ser o único efeito medianamente positivo no tempo extremamente ranhoso que temos tipo em todo o país. Fosse eu uma salamandra peçonhenta e estaria muito satisfeito com esta humidade toda. Isto para lagartagem e moluscos está um verdadeiro petisco. Mas para os seres humanos, à parte de terem agora como melhores amigos os mesmos gatos que lhes infernizavam a vida há seis meses atrás, não serve não senhor.

Eu já perdi a esperança de que alguma vez possamos voltar a ter dias de sol. Acho que acaba por ser mais sensato aceitar que daqui para a frente há-de ser isto ou muito pior. Há quem se queixe do aquecimento global e da poluição mas eu não tenho dúvidas que a culpa está em duas classes muito particulares de indivíduos: os amoladores e a malta da agricultura.

Ora, os amoladores vocês sabem porquê.
Não podem ver dois raios de sol sem que peguem no pífaro e venham estragar o dia ao resto das pessoas. Aquele maldito pífaro faz chover e, apesar de toda a gente saber que tem poderes mágicos, parece ser o segredo mais bem guardado da história. Países com seca era exportar para lá os amoladores e os pífaros e estava o problema resolvido. Não sei porque é que não tratam disso.
Ora, estes tipos são o primeiro entrave ao solinho, os índios da dança da chuva dos tempos pseudo-modernos (porque desde puto que os ouço a andar pela rua e a chamar borrascas), os tinhosos anti-praia. O governo pede para que sejamos empreendedores e, por causa disso, até já me passou pela cabeça desenvolver um projecto musical intitulado "As mais belas baladas em pífaro de amolador", como maneira de os retirar da rua e abrir novas oportunidades de negócio que não envolvam controlar a meteorologia. Mas isto já se sabe como é: o lobby das flautas de Pan é grande e não dá hipótese a mais ninguém. O que me leva à minha segunda ideia de os fuzilar a todos.

De resto, a malta da agricultura também tem culpas no cartório porque todos os anos se queixa que não há chuvinha para as couves, que não há chuvinha para as cenouras, não há chuvinha para o resto lá dos legumes deles...
Agora é calçar as galochas e andar a pescar hortaliça com água até ao pescoço.
Por causa dos queixumes.

Claro que percebo a falta que faz a chuva às plantações, nem ponho isso em causa. Mas gostava de saber porque é que raio é que me lembram disso quando dou pelas meias molhadas em plena baixa lisboeta! ALGUÉM ANDA A PLANTAR TOMATES NO LARGO DO CARMO?! Então porque é que não me posso queixar da chuva?! Tenham paciência...

É verdade, estou cada vez mais amargo.
Estamos em Abril e eu já não aguento mais a chuva e o frio.
E nem as ternuras do meu super-interesseiro gato servem para escamotear a situação.

Estou de tal forma perturbado que chego ao ponto de recordar com saudade um bizarro episódio ocorrido há uns meses valentes, no prédio do estúdio onde trabalho e que partilho com muitos outros trabalhadores liberais (termo fino para "desempregados"). Estávamos na altura a aproveitar os últimos dias de verão e a entrar na cinzenta era de trampa em que nos enfiámos. Saí do estúdio ao final do dia, na companhia de um amigo, e reparei que no patamar do prédio pairava um cheiro fortíssimo a verniz. No entanto, como um dos apartamentos estava em obras, rapidamente associei o odor químico à existência de "trabalhos". Quando me aproximei do elevador, reparei que a porta dessa mesma casa estava aberta e tinha efectivamente sido aplicado o produto no chão de tacos de madeira. Sorri, perante a minha extraordinária perspicácia.

O que não me fez sorrir foi a visão que acompanhava a entrada desse mesmo apartamento.

Ao lado da porta aberta estava um indivíduo.

Dos seus quarenta e poucos anos.

Alto e gordo.

Badocha imponente.

Papada debaixo do queixo.

Peludo.

Que ostentava, simples e exclusivamente, sobre o corpo nu...

... uns speedo azuis.

(speedo, para quem não sabe, são fatos de banho tipo cuecas)

...

...

Eu não sei o que é que foi mais desconfortável...
Se a reacção envergonhada do homem quando nos viu aparecer, se a visão apocalíptica daquele "deus Apolo" quase como veio ao mundo, se o facto de tanto eu como o meu amigo termos tido de esperar pelo elevador uns excruciantes segundos na sua companhia.

Julgo que ficaríamos igualmente atónitos se no mesmo sítio tivessemos visto duas renas a fazer o pino ou um mergulhador a assar chouriço. Nada daquilo fazia o mínimo sentido.

Mais tarde, com calma, adivinhámos que talvez o homem tivesse preferido aplicar o verniz naqueles preparos de modo a não sujar a roupa ou, no limite, ficar com as vestes impregnadas a químicos. As explicações podem ser muitas mas nada justifica aquilo. E não há indemnização que pague os danos morais de tal imagem no fim de um dia de trabalho.

Hoje, depois de meses a fio com um tempo de fugir, recordo com saudade o "campeão dos speedo".
Por ser um símbolo do tempo em que estar naqueles preparos era um acto de libertação refrescante.
Por ser um hino à loucura do verão.
Tempo esse que não volta mais.

Tirem-me mas é daqui!


Wednesday, February 12, 2014

É só comida, pá...

Eu sou um indivíduo que paga várias dezenas de euros por mês a uma conhecida marca de telecomunicações nacional. O mesmo indivíduo, que sou eu, pouco ou nada vê de televisão sem ser algumas séries que a patroa põe a gravar na box (porque tenho tanto jeito para mexer em aparelhos novos como um boi-cavalo para aprender linguagens de programação).

Ora...
Ainda assim, e porque pouco vejo, eu acho que passava bem sem os canais de TV que possuo.
Quando era miúdo, primeiro tinha só dois e não me chegavam. Depois, passei a ter quatro e continuava a ser pouco. Hoje tenho quatrocentos e não lhes ligo nenhuma. Bonito e sucinto resumo da evolução dos tempos.

O que se passa nesta casa é que, e apesar da farturinha, tirando as tais séries que vemos à refeição (porque nem eu nem a minha mulher já temos pachorra para trocar mais do que cinco palavras um com o outro) só há um raio de um programa que pontifica nos ecrãs luminosos destes aparelhos de televisão como se tivesse sido pintado no vidro. Um programa que está a levar-me ao desespero e a acabar, passo a passo, não só com a minha vida mas também com o controlo que ainda possuo sobre a bexiga e outras válvulas potencialmente embaraçosas.

Um título do demónio chamado MASTERCHEF.

...

Amigos, nesta casa, e sem qualquer tipo de exagero (que eu não sou nada dessas coisas), esse seriado dá 60 minutos por hora, 24 horas por dia, 30 ou 31 dias por mês (Fevereiro incluído)!
O ano todo, sempre... SEMPRE!

A minha mulher deixa-se estar a olhar para a TV com aqueles olhos vítreos e baços de quem só está à espera que o peito de frango acabe de caramelizar para me vir degolar durante o sono. Eu sei que posso estar a inventar coisas mas passei a dormir com um garfo de sobremesa debaixo da almofada pelo sim pelo não. Não entendo o fascínio generalizado por este programa e, para mim, a menos que me provem o contrário, até pode ser uma manobra de hipnose colectiva muito bem elaborada para erradicar da face da Terra todos aqueles cujas habilidades na cozinha não vão além de fazer chá. Portanto, devo estar em muito maus lençóis.

Mas até assumo ser uma coisa bem produzida e até algo interessante. Nada a ver com aquela que considero ser a pior série de todos os tempos da televisão de todo o mundo, a escória da programação, o sebo ressequido da grelha, o pus anal das telecomunicações... Também apelidado por "Querido mudei a casa". Isso sim é algo que assumo como ofensa pessoal por ser tão mau, mas não vou alongar-me demasiado acerca do assunto porque, diz o médico e o chefe da PSP da minha zona de residência, não me posso enervar.

Não tenho nada contra o Masterchef mas, e porque sou obrigado a conviver tanto tempo com isto, há alguns aspectos do programa que começam a provocar-me úlceras na alma.

Primeiro que tudo: quantos episódios é que tem realmente uma temporada?! É que isto dura para sempre. PARA SEMPRE! Eu vejo parte de um dos do início e estão lá trinta (e eu não sabia que havia assim tantas pessoas na Austrália). Mais à frente volto a ver e ainda lá estão todas, senão mais duas ou três. COMO É QUE ISTO SE EXPLICA?! Cheguei a ver episódios em que um dos tipos é algo massacrado pela crítica, ou porque deixou tostar o leitão ou arrefecer as batatas, não me lembro... problemas lá deles! Em qualquer outro programa do mundo, esse tipo, como lhe correu mal o cozinhado e aquilo é bota-fora já se sabe... Vai de vela. Mas ali não! Corre mal e ele não só fica como ainda lá está passado trezentos episódios a tempo de poder entrar a dada altura o filho ou a filha que entretanto já fez dezoito e nunca conheceu o pai...

QUANTOS EPISÓDIOS TEM UMA TEMPORADA DESTA PORRA, PÁ?!

Depois, é a importância que se coloca nas coisas... Eu gosto muito de comer e reconheço que boa papa tem arte e mais não sei o quê. Respeito muito quem sabe cozinhar e ainda mais quem se dá ao trabalho de o fazer para mim. Eu não consigo, porque não tenho a sensibilidade necessária e porque já é uma grande coisa acertar na sanita quando faço xixi. Cada um faz o que faz melhor. Mas... caros amigos... É só comida, pá. Não vale a pena chorar nem desesperar nem dizer que a nossa vida é um prato de perdizes de caça com legumes salteados. Tenham lá calma e pensem na família e nas pessoas que vos querem bem. Tal é o drama à volta das patuscadas que eu acho que as prioridades estão um bocado do avesso no raio da ilha dos cangurus, ó catano.

O meu avô tem noventa anos e já me comunicou a imensa estranheza com que verifica o fenómeno dos programas de culinária cada vez mais em voga. "Olho para a televisão...", diz ele, "Estão a fazer comida... Passadas duas horas lá estão eles a fazer comida... À noite, novamente a fazer comida...". O meu avô tem razão, senhores. É demais...

A SÉRIO, QUANTO DURA UMA TEMPORADA DO MASTERCHEF?!

E depois são todos amigos e carinhosos uns com os outros. Não digo que tenha de haver peixeirada e gritaria à americana, embora admita que às vezes nem é mal pensado para espevitar as coisas. Mas a quantidade de sorrisos, de gestos, de festinhas e das outras paneleiragens todas que cobrem o raio daquele gente de melaço já me começa a meter nojo! 'Tá bem que é uma abordagem diferente de reality show e que não querem lá ir pelo negativo mas bolas... É mesmo possível arranjar assim um grupinho de teletubbies saltitantes que se amam todos uns aos outros e a toda a gente do programa?! Não há quem se dê mal ou que não vá com a cara de alguém?! É assim tudo tão perfeito na Austrália?! Bardamerda!

E ISTO TUDO AO LONGO DE QUANTOS EPISÓDIOS, MESMO?!

A avaliar as centenas de concorrentes (cujo número, como que por magia, cresce a cada programa em vez de decrescer), estão sempre os mesmos três tipos. Dois cozinheiros gentis e fofinhos como pandas e um outro cavalheiro que é crítico e que se veste como se frequentasse a corte do Luís XIV. Às vezes gostam muito das comidas que provam, outras gostam um pouco menos, nunca acontece cuspirem a mixórdia para o lado com repugnância. Quanto menos não fosse por isso, até seria proveitoso levarem-me lá a preparar um dos meus cozinhados para que acontecesse algo diferente na série.

O Masterchef parece-me uma colónia de férias para deficientes. Ninguém perde, ninguém é expulso... No fim, há prémios para todos.

No Masterchef todos sorriem e são felizes. Quando choram é para dizer que o sonho deles sempre foi fazer comida para outros encherem o bandulho.

No Masterchef, um ovo estrelado demora duas semanas a fazer.

É UM PROGRAMA QUE NUNCA MAIS ACABA!

...

...

E a minha mulher continua a ver isto como se estivesse fora do alcance dela pegar no comando e mudar de canal. E eu, se quero estar um bocadinho ao pé dela, não posso evitar ver uma vez mais, e mais uma vez, tudo aquilo que vomitei ainda agora para este texto.

Só queria poder voltar a olhar para uma costeleta como antes.
Sem ver à sua volta toda uma tabela de reduções e temperos e nomes em estrangeiro que me recuso a aprender.

Só queria voltar aos tempos do Carlos Capote e da Vacondeus.
Em que a comida era só comida, despachava-se a coisa em vinte minutos e vamos lá embora que 'tá na hora do telejornal.

Só queria poder voltar a dormir descansado.

...

E devolver o garfo de sobremesa à gaveta dos talheres.

Friday, December 27, 2013

Agruras de um Natal passado

Estes governantes são tramados, pá.
As coisas que aquelas cabecinhas arranjam p'rá gente não ligar demasiado aos aumentos que tarda nada nos vão obrigar a vender o rabo para sobreviver... E não pensem que isto é apenas mais um dos meus exageros. É que ainda há bocado vi no telejornal que vai subir tudo o que são prestações e contas em 2014, desde o gás à água, passando pela electricidade, prestações da casa e taxas moderadoras dos hospitais. A venda do rabo é cada vez mais uma realidade e só se safará quem tiver bom rabo. Da minha parte, posso garantir que estou em muito maus lençóis porque, da última vez que vi, o meu rabo tinha sido considerado "lixo" pela própria Standards and Poors. Provavelmente, safar-me-ei com um ou outro estivador menos criterioso... Mas até aí será complicado porque também os estivadores andam a passar mal.

E curiosamente até é de lixo que estou a falar. Esta história da greve da recolha, para mim, foi uma jogada de mestre. Com os efeitos desta greve, ao primeiro beduíno que levantar a voz contra a política dos aumentos, sempre podem responder que acabámos o ano atolados em merda até às orelhas e portanto, a partir daí, é sempre a melhorar. Portanto não me parece que hajam coincidências.

Lisboa está tão afogada em lixaria que parece que o terramoto foi na semana passada.
Calculo que até leprosos medievais se recusariam a passar em certas ruas, da maneira como isto está. Eu sou solidário com os homens do lixo, não por causa da história de não quererem passar p'rás freguesias e tudo mais, que aquela malta tem é de trabalhar e calar o bico, mas devido a um exemplo em particular. Quando era miúdo, havia um homem do lixo na minha rua que tinha um cabelo que sim senhor. Forte, viçoso e com aquele lustro cor de petróleo que só meses de recusa à higiene podem explicar. Eu sempre prezei o meu cabelo, mais ou menos até à altura em que comecei a ficar sem ele, e portanto olhava p'raquilo um pouco como os putos do Funchal olham para o Cristiano Ronaldo. Na altura, daria ambas as minhas pernas por uma cabeleira com aquele calibre, primeiro porque o que gostava mesmo era de estar sentado a despachar sandes de marmelada, portanto podia bem passar sem elas, e segundo porque assim teria a certeza de que nunca, mas nunca, viria a experimentar as agruras da calvície.

Cresci fascinado pelo homem do lixo do cabelo de aço e nunca fiquei a perceber a verdadeira natureza de tal fenómeno: se eram genes, se a total ausência de contacto com H2O ou se simplesmente os vapores dos resíduos que fortaleciam o escalpe. Tanto quanto sei, o homem até podia ser careca, mas como não havia banho para retirar os cabelos mortos eles lá ficaram, entrançados, num enorme telhado de pladur capilar. Enfim, ídolos de infância todos temos.

Penso que, principalmente por isso, durante breves momentos também eu quis ser homem do lixo. Aliás, ao longo da minha vida quis ser várias coisas até ter tomado a decisão de ser aquilo que sou hoje. Que é algo que não consigo descrever mas que há quem defina como "freelancer", "jeitoso", "escritor frustrado" ou "aquele tipo que olha para mim fixamente e que me faz deitar a mão ao gás pimenta sempre que aparece". No entanto, as minhas ambições de futuro esbarravam sempre no trágico e rigoroso muro da realidade. Quis ser veterinário mas percebi que era mais do que fazer festinhas aos cães. Quis ser pescador mas percebi que isso era estúpido. Quis ser dono do mundo (e por alguma razão achava que para isso precisava de uma espada e de um cavalo) mas havia um amigo meu que queria ser a mesma coisa e já tinha o cavalo. Quis ser paleontólogo mas depois de ver o Jurassic Park em 93 toda a gente queria. Enfim...

No fundo, o que eu queria mesmo era um cabelo como o do homem do lixo.
E daí o meu carinho por toda aquela malta.
Estou triste por se verem forçados a fazer greve, pelos aumentos que aí vêm e por ter de enfiar a boca em dúzias de sacas fedorentas com restos do Natal para chegar até ao carro e ir para casa.

Estas tristezas todas lembram-me, já agora, uma das coisas mais comoventes que alguma vez vi na televisão. Curiosamente na altura do Natal e também curiosamente protagonizadas por um tipo com um cabelo que sim senhor: Michael Landon da série "Um Anjo na Terra". Quem se lembra desta série provavelmente já estará num lar de terceira idade a comer açorda por uma palhinha e saberá que o único intuito da mesma era fazer chorar. Um pouco como as entrevistas do Daniel Oliveira mas em formato seriado e ainda mais explosivas. Todos os episódios eram tristes à sua maneira mas este... Este rebentou a escala.

Bom, vou deixar aqui o link para não me chamarem mentiroso.
Se vos apetecer ver depois do telejornal de hoje à noite pode ser que fiquem com um impulso incontrolável de sacrificar ninhadas de pandas e de tatuar suásticas na testa, mas isso serão apenas efeitos secundários.

Ora portanto, a sinopse é mais ou menos a seguinte:

Aquilo começa com um puto deficiente (que se não é mesmo deficiente então é muito bom actor) que, em jeito de bónus, é também sem abrigo. O desgraçado está a roubar um queque e um conjunto de velinhas numa loja de conveniência. A dada altura, porque como é deficiente é também um bocado trôpego, o puto lá faz merda e o dono da loja percebe que está a ser roubado. Por pouco não lhe prega uma lamparina bem aviada na tromba porque o rapaz consegue fugir e esgueirar-se até casa. Aqui, "casa" é uma caixa de cartão num beco escuro e badalhoco. Ora, perguntam vocês porque é que o miúdo deficiente foi correr este risco todo para gamar um queque e umas velas? Porque fazia anos e queria celebrar...

...

Eu por esta altura já não sabia se chorava ou se me mijava todo.
Tais eram as convulsões que sentia pelo corpo.

...

Ora, queria celebrar mas não estava sozinho. Tinha a companhia do seu único amigo: um gato sarnento a quem ele chamou repetidas vezes, pelo meio dos incessantes perdigotos que lhe saltavam da boca, de "o meu presente de aniversário". Enfim... Aparece Michael Landon com o seu extraordinário cabelo (semelhante ao do homem do lixo que eu conhecia mas com o factor champô à mistura) e, porque é um anjo e tem contactos privilegiados, consegue fazer com que um casal de classe média alta adopte o miúdo "especial". Ele lá vai para um grande casarão e tal, conhece o filho biológico do casal que surpreendentemente nem é muito mimado e durante um bom quarto de hora até parece que a coisa vai ter final feliz.

...

Aqui, entre o ranho que me escorria pelo peito até às virilhas, eu já tinha gasto duas embalagens de lenços e começava a achar que não valeria a pena abrir uma terceira.

...

A dada altura, por alguma razão há um fogo na casa e a malta que até ali tinha sido muito dócil e compreensiva não hesita um milésimo de segundo a culpar o deficiente e a correr com ele dali p'ra fora.

...

Tal qual.

...

Portanto, o puto lá regressa para a caixa de cartão, que por esta altura tinha mais SIDA que papel, e volta a passar as noites abraçado ao gato e a desejar que a catrefada de parasitas que a bicheza carrega no pêlo não o cegue durante a noite.

...

Fim.




Bom, é possível que não tenha sido 100% assim mas é assim que eu me lembro do raio do episódio. Ainda hoje, aos 31 anos, não há Natal que não me lembre do puto miserável e do Michael Landon sempre que vejo tristezas na televisão e fico receoso em relação ao futuro.

Espero que estes dramas todos se resolvam e que possamos começar o novo ano da melhor maneira.

Menos inquietação, melhores condições para os trabalhadores e se possível...

... mais saudinha para o meu cabelo, se faz favor.

Friday, November 8, 2013

Não me sirvam pudins azedos

Os animais...

...

Estou só a lançar o tema para cima da mesa a ver se alguém começa a discussão.

...

É que eu não sei mesmo o que pensar deles...
Quando era miúdo, era obrigado a manter-me afastado por razões de saúde. Não, não padecia da condição psicológica contra-natura de muitos pastores, tinha era mais alergias do que uma prostituta tailandesa e, por causa disso, não me deixavam ter cães nem gatos. Ok, tive tartarugas, peixes, hamsters e periquitos, mas aqueles que não tiveram mortes precoces e traumatizantes revelavam-se uma enorme desilusão de tão aborrecidos que eram. Toda a gente sabe que só os tem quem não pode ter animais de estimação a sério...

Já na altura tinha dúvidas de como devia entender isto da bicharada e hoje esse debate mental (que é, a todos os níveis, perturbador) está a atingir picos de intensa bizarria.

No outro dia, passeava-me eu de cuecas pela cozinha (já não me lembro se ia beber um copo de água ou se estava apenas a ter um dos meus momentos "especiais"), reparei que no lavatório jazia o corpo adormecido de uma pequena sardanisca. Ora, na infância, e apesar de apreciar fauna no geral, apreciava também muitíssimo tudo o que pudesse estar envolvido com barbárie e selvajaria. Era uma criança de contrastes, acho. Eu podia passar a tarde toda, muito fofinho, a coleccionar cromos de animais selvagens ou a ver documentários na televisão, mas bastava chegar a casa e ver uma barata no corredor para exigir a sua cabeça, babando-me e aos guinchos, para junto aos meus pais. Isso ou ir eu mesmo, por minha iniciativa, desfazer-lhe o corpo e profanar-lhe a alma com a ajuda de chinelos, venenos ou lança-chamas (que infelizmente nunca havia na despensa, por mais que procurasse).

Surpreender uma sardanisca no lavatório da cozinha lembrou-me um episódio semelhante ocorrido no passado, há muitos anos atrás. Numa outra casa, num outro tempo, o meu pai aprisionava um réptil em tudo semelhante num coador (porque também estávamos numa cozinha e era o que ele tinha mais à mão) e pedia-me que o matasse o mais rapidamente possível. Olhei à volta e não vi nada que pudesse ser usado para aniquilar a existência de tal micro-inimigo... Não havia aerossol, não havia um rolo de jornal, apenas... Um enorme e maciço MARTELO.

Peguei na ferramenta e aproximei-me do coador, com um brilho estranho nos olhos muito abertos, enquanto ouvia o meu pai berrar (com os olhos não menos abertos):

DEVAGARINHO!

DEVAGARINHO!

DEVAGARINHO!

...

Alcei o martelo atrás da nuca, sempre inexpressivo e focado na minha missão.

...

Desferi o golpe, fazendo um ângulo perfeito com o braço de modo a imprimir mais violência.

...

E PÁS NA CABEÇA DA BICHA!!!

...

Sardanisca espalhada pelo coador.

Pelo fogão da cozinha.

Pelo chão.

Pela parede.

E ainda hoje o meu pai deve andar a tirar bocados da mioleira dela dos dentes também...

...

É por essas e por outras, por me sentir mal pelo que lhe fiz, que comecei a pensar na vida e a reflectir na génese desse meu apetite por sangue e tripas. Se eu gostava de animais, porquê tanto interesse em matá-los, mesmo que fossem nojentos, incomodativos ou desagradáveis à vista? Já na altura, bastava sair à rua para ver dezenas de pessoas com essas mesmas características (então em Arroios...!), por isso não era justo que uns fossem filhos e outros enteados. Com muito raciocínio e avaliação pessoal, fui crescendo, amadurecendo, desenvolvendo a minha maneira de ver o mundo e hoje, apesar de continuar a ter sentimentos díspares para com os bichos, posso dizer que respeito a existência de todos eles e só muito raramente opto por lhes fazer mal. Apenas quando as vozes na minha cabeça me obrigam a... fazer coisas.

Mas estava eu a dizer...
Encontrei a sardanisca no meu lavatório, muito pequena e esverdeada como uma esmeralda ao sol e, por alguma razão, senti por ela um amor profundo. Estava disposto a retirá-la do meu espaço com todo o carinho e languidez que os anos me ensinaram a ter. A minha oportunidade de fazer as pazes com o universo. Com gestos silenciosos e fluídos, como um mestre de tai-chi, retirei um copo de plástico do armário de cima e um pedaço de cartão para servir de base. Olhando a criatura nos olhos, como que querendo hipnotizá-la com a minha alma terna e caridosa, baixei sobre ela, com muito jeitinho, o copo de plástico para que não conseguisse fugir. Milímetro a milímetro, falando-lhe baixinho com doçura, coloquei também a base de cartão que me iria permitir transportá-la até à rua. Depois de cumprir o meu objectivo (e estando certo que, às tantas, a bicha nem sequer se apercebeu do que tinha acabado de acontecer), subi as escadas até ao terraço evitando os olhares gulosos deste presunto ambulante com patas a quem eu chamo de gato e guardo em casa como animal de estimação (a sério, este barriga de mijo está tão balofo que qualquer dia tenho de ir dormir para o sofá e deixar-lhe a minha cama...)

Bom, cheguei ao terraço segurando a base e o copinho com a sardanisca nas mãos, como uma oferta minha à natureza, glorificando a vida e todas as coisas sagradas, e comecei a pensar o que iria afinal fazer com ela. Atirá-la do terceiro andar não me parecia lá muito boa ideia dado o trabalho que tinha acabado de ter e a harmonia que bailava candidamente no meu coração. Deixá-la no mosaico também podia ser espinhoso caso ela decidisse enfiar-se dentro de casa outra vez. Daí, a solução passou por atirá-la para o telhado, apenas separado do meu terraço por uma grade.

Assim...

Coloquei os braços do outro lado do gradeamento...

Lancei à criatura um suave beijo de despedida, cheio de bondade e calor humano...

Retirei o copo de plástico...

Como eu suspeitava, ela não percebeu logo que estava livre...

Dei balanço com a base de cartão...

Atirei-a para a frente...

E depois de ter batido com a cabeça numa telha ficou INERTE E DE PATAS VOLTADAS!!!

...

...

F***-*E!!!

...

...

EU NÃO QUERIA CRER QUE AQUELE TRABALHO TODO TINHA SERVIDO PARA PARTIR O RAIO DO PESCOÇO À CRIATURA!!!

NÃO QUERIA CRER QUE O MUNDO ME IA FAZER ESSA DESFEITA!!!

40 MINUTOS DE MOVIMENTOS BRANDOS E SINUOSOS PARA, EM MENOS DE NADA, TER DE ASSISTIR AO CADÁVER A DESFAZER-SE DURANTE AS SEMANAS SEGUINTES.

EU NÃO QUERIA CRER!!!

...

Recusando-me a aceitar os factos, fiquei agarrado à grade, ainda de roupa interior, a chamar pela sardanisca num tom misto entre o aflito e o incrédulo.

Estamos a falar de um homem de trinta anos, em cuecas, a segurar uma parte da sua casa com ambas as mãos e a suplicar piedosamente pelo corpo inerte de uma sardanisca.

Portanto, um bonito espectáculo para todo e qualquer vizinho que estivesse à janela.

...

Ainda ali passei uns cinco minutos, sem sucesso.

E só depois de lhe atirar duas pedrinhas que saquei de um vaso é que a vi levantar-se e seguir o seu caminho.

Muito provavelmente para morrer em paz, uns metros mais adiante.

Ora, não é fácil admitir que aquela imensa odisseia para não roubar uma vida e respeitar todos os seres vivos acabou comigo de cuecas no terraço, a lapidar a carcaça ainda semi-viva da criatura que jurara proteger. Mas foi isso que se passou e é com a realidade que tenho de coexistir até ao fim dos meus dias. Portanto, se calhar continuo a ser a mesma besta do passado mas mais cínica, menos assumida e mais corrompida pelo mundo dos homens.

Ao menos tenho feito um esforço para decidir se os animais são, ou não são afinal, criaturas que valham a pena. Às vezes tenho a certeza que sim mas outras, começo a achar que não...

Por exemplo, eu reconheço valor aos javalis como indivíduos da floresta (que andam lá nas tocas deles e não chateiam ninguém) e como personagens de banda desenhada do Astérix. Têm com certeza qualidades e outros javalis que gostam muito deles mas, quanto a mim, não os ponham a servir à mesa...

Sim, a servir à mesa.

No outro dia, fui jantar a uma espelunca que já foi restaurante. Ao entrar, achei logo estranho que estivesse um porco selvagem a equilibrar-se nas patas de trás e a trazer a comida aos clientes mas como já vi tanta coisa estranha nesta vida (a maior parte dela no extinto jornal 24 Horas), em situações como estas prefiro calar a boca e seguir em frente. Houve quem dissesse que não se tratava afinal de um javali mas de uma pessoa em tudo semelhante a um suíno do bosque mas mais mal cheiroso e com o focinho mais cheio de gosma, mas não houve consenso em relação ao assunto. Mesmo que não fosse 100% porco, o que é certo é que a mãe fora com certeza violada por um, de quatro num celeiro, e passados nove meses trouxera ao mundo aquele artista. Portanto, até aí estávamos todos de acordo.

Mas sem querer afastar-me demasiado do assunto (e até porque isto é apenas um bizarro aparte), no final do jantar consegui identificar entre os grunhidos da besta que havia pudim para sobremesa. Pedi-lhe um e ele trouxe-mo poucos minutos depois, embalando o pratinho no casco.

À primeira colherada, espargi mais depressa a mixórdia do que levaria a ASAE a fechar o pardieiro e a mandar incinerar o corpo fedorento do empregado. Mais azedo do que aquele ex-pudim só mesmo um dos casacos coloridos do Goucha. Um verdadeiro atentado ao meu bem estar e um insulto a todos os grandes adeptos da nobre arte de realizar e degustar pudins.

Chamei o porco e disse-lhe que a sobremesa não estava em condições, que estava estragada.
O bicho ergueu as orelhas que tinha à frente dos olhos com indignação, raspou o muco das narinas com um fungo prolongado e pegou no prato da sobremesa com desconfiança.

Vi eu e viram as pessoas que estavam comigo, o javali a refundir-se para uma zona mais isolada e encostar o focinho ao doce. Não convencido com o fedor que certamente lhe teria queimado os pêlos das narinas caso fosse um ser humano normal, pegou na minha colher e deitou, ele próprio, um pedaço da gosma amarelecida sob a sua roliça e babujada língua de porcalhão.

Apercebendo-se de vez que dificilmente aquilo poderia estar mais podre e impróprio para consumo, a besta escarrou o pedaço que tinha jogado à boca para o mesmo prato de onde o tinha tirado e arrastou-se já quase em quatro patas de volta para a cozinha.

Irritado como se tivesse sido alvo de insultos...

Sem um pedido de desculpas...

Sem um grunhido arrependido...

Sem outro pudim que eu com toda a certeza recusaria.

...

...

Portanto, isto aconteceu, assim como o outro episódio embaraçoso, e só perpetua a minha dificuldade em concluir se os bichos prestam ou não prestam.

Se são bons ou são maus.

Se devo tratá-los com apreço ou terraplaná-los à base de bombaria.

Vou continuar a pensar no assunto.
E entretanto vou permitir que continuem a aproximar-se de mim, de vez em quando.
Desejando que me convençam com a sua simplicidade. Que me surpreendam com os seus gestos primitivos. E se possível...

... Que não me sirvam pudins azedos.

Monday, October 21, 2013

Uma nova era...


O meu muito obrigado àqueles que estiveram presentes na Biblioteca Camões no último Sábado. O meu ar de suricato cadavérico está relacionado com o estado de extremo cansaço em que me encontro e que estou a tentar ultrapassar.

Mas ainda assim deu-me muita força ter visto lá tantas caras amigas.

Vi também outras inimigas e demoníacas mas isso é porque quando estou cansado vejo coisas.

E sou perigoso.

Pronto, para quem não conseguiu ir e gostava de ter o livro, a informação para a encomenda encontra-se aqui à direita. Isto enquanto não disponibilizo a lista de livrarias onde o bicho vai estar, claro.

Entretanto, já para a semana começa uma nova era e nova vaga de textos aqui no estaminé.
Porque me faz falta escrever disparates e celebrar o absurdo que é a vida.

Espero ter-vos sempre a celebrar comigo.

Quero também criar uma mailing list para notificar sempre que colocar um texto novo.
Quem quiser ser adicionado escreva um mail com o subject ADICIONA-ME para horadosaguim@gmail.com

Isso ou coloque seguir por email também aqui à direita ou acompanhe-me no twitter.

O Saguim é chato, não é?
Pois é...

Abraço a todos.

Wednesday, October 16, 2013

"Hora do Saguim - O Livro" este Sábado às 19h...

... na Biblioteca Municipal Camões em Lisboa.

É desta! Vemo-nos por lá.