Monday, January 14, 2008

Para quem não sabe, há coisas erradas em mim

Sinto que está na hora de assumir algo que está errado em mim, deixando de escamotear e omitir aquilo que é demasiado evidente. Algo que está errado em mim... qualquer pessoa que já se deu ao trabalho de ler um ou outro post deste blogue (Olá mãe!) deve estar agora a pensar: "Este indivíduo devia era descobrir aquilo que NÃO tem de errado!"... mas pronto, as coisas são como são e ninguém me tira o valor desta descoberta.

EU SOU UM INDIVÍDUO QUE... COMO É QUE EU HEI-DE COLOCAR ISTO... ORA BEM... HUMMM... DEVOLVE COISAS.

Nesta altura, devem estar a pensar: "Isso é positivo. Hoje em dias as pessoas são egoístas e não há nada mais filantrópico do que devolver amor quando se recebe amor, devolver amizade quando é isso que se recebe, devolver compreensão quando se é compreendido...". Mas não é nada disso, meus amigos. Eu devolvo as coisas que ninguém quer de volta, e isto é um problema sério e patológico que eu tenho. Vamos a exemplos? Então, vamos lá a isso...


Episódio 1

Estava eu na Praia da Luz, muito anos antes de lá terem passado os McCann por isso não vale a pena fazerem insinuações do tipo: "Ah eu bem me parecia que este tipo era demente e, pelos disparates que escreve, é menino para estar metido com os bandidos lá naquela trapalhada toda.", arrastando-me pela areia com molenguice. A dada altura, um gigantesco estrangeiro com fronha de viking lança uma bola na minha direcção. Eu decido ser um bom cidadão português, sempre desejando fazer com que os turistas se sintam em casa, pego na bola e devolvo-a ao antipático nórdico que olha para mim raivosamente. É aí que eu percebo que acabo de devolver uma bola do estúpido jogo de nome Petangue, e também prestes a devolver a minha alma ao criador. A única coisa que fez com que a veia do pescoço do viking parasse de latejar foi o facto de eu não passar de uma pequena criatura palerma, com excesso de peso e boné à tótó. A mulher viking, que estava a jogar com ele e por isso com um semblante não menos carregado, disse-lhe qualquer coisa na língua lá deles e acabou por ficar tudo sereno mas sobre uma enorme tensão. Eu afastei-me com o rabinho entre as pernas e a sensação nítida de que mais valia ter ficado quieto. Neste caso, apesar da culpa ser minha, o Petangue não deixa de ser um jogo efectivamente estúpido. Estamos na praia, ao ar livre, a apanhar o ar fresco do mar, solzinho bom e o que fazemos? Estamos curvados a mandar bolinhas... Não faz sentido.


Ora, este episódio marcou toda a minha infância: a parvoíce do momento, a hesitação do quase-assassínio, a veia do viking a latejar, as gotas de suor na minha testa... Passei anos mais calmos, a reprimir este meu defeito de ser um indivíduo que... como é que eu hei-de colocar isto... ora bem... hummm... devolve coisas. Até há uns dias atrás.


Episódio 2

Desloquei-me a Santo António dos Cavaleiros para assistir a um concerto da banda de um amigo meu. Até aí tudo bem, todos conhecem as chamadas "boogie nights" de Santo António, a loucura e o calor da noite, estava maravilhado com o espírito rebelde da metrópole nocturna: "EPÁ QUE ESPECTÁCULO!!!", pensei eu. O meu amigo malhava na guitarra-baixo como se não houvesse amanhã, uma autêntica estrela do rock num bar marginal. Eu sei que os tocadores de guitarra-baixo não é costume darem show mas este meu amigo é assim, e é assim que os Santo Antónios dos Cavaleirenses gostam dele. A dada altura esse meu amigo decide dar um salto no ar, assinalando um acorde mais violento, e, para dar mais excitação ao acto, cospe vigorosamente a palheta que tinha presa na boca. A palheta cai no chão afundada numa poça de baba. Eu, que não vi o acto repugnante do meu amigo roqueiro, apanho a palheta e começo a tentar devolver-lha no meio do concerto. A minha namorada e os amigos que estavam sentados comigo escondem a cara com as mãos, eu permaneço em pé a tentar devolver a palheta com um sorriso estúpido, ninguém da banda me liga nenhuma. No fim da música, o meu amigo roqueiro dá-me uma palmada nas costas e diz-me com simpatia: "Podes ficar com ela, campeão." mostrando que possuía várias dezenas de palhetas perto de si. Eu sento-me, todo contente, julgando que fui prestável. A minha namorada explica-me o que se passou e eu escondo a cara com as mãos.


Meus amigos, o problema afinal continua latente e de boa saúde. Eu tenho este problema e não há meio de me ver livre dele. Faz-me temer o meu futuro e imaginar vários perigos na minha vida. Por exemplo:

1) Se me enviarem para a tropa e eu fôr para a guerra, há boas hipóteses de devolver aquela granada que um dos meus camaradas lançou.

2) Se algum dia me casar, é bem possível que a primeira coisa que faça ao sair da igreja seja ir à ourivesaria devolver as alianças.

3) Se algum dia tiver filhos e eles me vierem oferecer aqueles desenhos fofinhos tipo "És o melhor pai do mundo!", eu hei-de responder "Está bem, está bem." e atiro-lhes o presente para cima, devolvendo-o.


Por isso, a bem do país e do mundo, evitem que eu me case, que tenha filhos e, acima de tudo, que me mandem para a tropa e para a guerra. É coisa para aleijar uma pessoa.