Friday, December 27, 2013

Agruras de um Natal passado

Estes governantes são tramados, pá.
As coisas que aquelas cabecinhas arranjam p'rá gente não ligar demasiado aos aumentos que tarda nada nos vão obrigar a vender o rabo para sobreviver... E não pensem que isto é apenas mais um dos meus exageros. É que ainda há bocado vi no telejornal que vai subir tudo o que são prestações e contas em 2014, desde o gás à água, passando pela electricidade, prestações da casa e taxas moderadoras dos hospitais. A venda do rabo é cada vez mais uma realidade e só se safará quem tiver bom rabo. Da minha parte, posso garantir que estou em muito maus lençóis porque, da última vez que vi, o meu rabo tinha sido considerado "lixo" pela própria Standards and Poors. Provavelmente, safar-me-ei com um ou outro estivador menos criterioso... Mas até aí será complicado porque também os estivadores andam a passar mal.

E curiosamente até é de lixo que estou a falar. Esta história da greve da recolha, para mim, foi uma jogada de mestre. Com os efeitos desta greve, ao primeiro beduíno que levantar a voz contra a política dos aumentos, sempre podem responder que acabámos o ano atolados em merda até às orelhas e portanto, a partir daí, é sempre a melhorar. Portanto não me parece que hajam coincidências.

Lisboa está tão afogada em lixaria que parece que o terramoto foi na semana passada.
Calculo que até leprosos medievais se recusariam a passar em certas ruas, da maneira como isto está. Eu sou solidário com os homens do lixo, não por causa da história de não quererem passar p'rás freguesias e tudo mais, que aquela malta tem é de trabalhar e calar o bico, mas devido a um exemplo em particular. Quando era miúdo, havia um homem do lixo na minha rua que tinha um cabelo que sim senhor. Forte, viçoso e com aquele lustro cor de petróleo que só meses de recusa à higiene podem explicar. Eu sempre prezei o meu cabelo, mais ou menos até à altura em que comecei a ficar sem ele, e portanto olhava p'raquilo um pouco como os putos do Funchal olham para o Cristiano Ronaldo. Na altura, daria ambas as minhas pernas por uma cabeleira com aquele calibre, primeiro porque o que gostava mesmo era de estar sentado a despachar sandes de marmelada, portanto podia bem passar sem elas, e segundo porque assim teria a certeza de que nunca, mas nunca, viria a experimentar as agruras da calvície.

Cresci fascinado pelo homem do lixo do cabelo de aço e nunca fiquei a perceber a verdadeira natureza de tal fenómeno: se eram genes, se a total ausência de contacto com H2O ou se simplesmente os vapores dos resíduos que fortaleciam o escalpe. Tanto quanto sei, o homem até podia ser careca, mas como não havia banho para retirar os cabelos mortos eles lá ficaram, entrançados, num enorme telhado de pladur capilar. Enfim, ídolos de infância todos temos.

Penso que, principalmente por isso, durante breves momentos também eu quis ser homem do lixo. Aliás, ao longo da minha vida quis ser várias coisas até ter tomado a decisão de ser aquilo que sou hoje. Que é algo que não consigo descrever mas que há quem defina como "freelancer", "jeitoso", "escritor frustrado" ou "aquele tipo que olha para mim fixamente e que me faz deitar a mão ao gás pimenta sempre que aparece". No entanto, as minhas ambições de futuro esbarravam sempre no trágico e rigoroso muro da realidade. Quis ser veterinário mas percebi que era mais do que fazer festinhas aos cães. Quis ser pescador mas percebi que isso era estúpido. Quis ser dono do mundo (e por alguma razão achava que para isso precisava de uma espada e de um cavalo) mas havia um amigo meu que queria ser a mesma coisa e já tinha o cavalo. Quis ser paleontólogo mas depois de ver o Jurassic Park em 93 toda a gente queria. Enfim...

No fundo, o que eu queria mesmo era um cabelo como o do homem do lixo.
E daí o meu carinho por toda aquela malta.
Estou triste por se verem forçados a fazer greve, pelos aumentos que aí vêm e por ter de enfiar a boca em dúzias de sacas fedorentas com restos do Natal para chegar até ao carro e ir para casa.

Estas tristezas todas lembram-me, já agora, uma das coisas mais comoventes que alguma vez vi na televisão. Curiosamente na altura do Natal e também curiosamente protagonizadas por um tipo com um cabelo que sim senhor: Michael Landon da série "Um Anjo na Terra". Quem se lembra desta série provavelmente já estará num lar de terceira idade a comer açorda por uma palhinha e saberá que o único intuito da mesma era fazer chorar. Um pouco como as entrevistas do Daniel Oliveira mas em formato seriado e ainda mais explosivas. Todos os episódios eram tristes à sua maneira mas este... Este rebentou a escala.

Bom, vou deixar aqui o link para não me chamarem mentiroso.
Se vos apetecer ver depois do telejornal de hoje à noite pode ser que fiquem com um impulso incontrolável de sacrificar ninhadas de pandas e de tatuar suásticas na testa, mas isso serão apenas efeitos secundários.

Ora portanto, a sinopse é mais ou menos a seguinte:

Aquilo começa com um puto deficiente (que se não é mesmo deficiente então é muito bom actor) que, em jeito de bónus, é também sem abrigo. O desgraçado está a roubar um queque e um conjunto de velinhas numa loja de conveniência. A dada altura, porque como é deficiente é também um bocado trôpego, o puto lá faz merda e o dono da loja percebe que está a ser roubado. Por pouco não lhe prega uma lamparina bem aviada na tromba porque o rapaz consegue fugir e esgueirar-se até casa. Aqui, "casa" é uma caixa de cartão num beco escuro e badalhoco. Ora, perguntam vocês porque é que o miúdo deficiente foi correr este risco todo para gamar um queque e umas velas? Porque fazia anos e queria celebrar...

...

Eu por esta altura já não sabia se chorava ou se me mijava todo.
Tais eram as convulsões que sentia pelo corpo.

...

Ora, queria celebrar mas não estava sozinho. Tinha a companhia do seu único amigo: um gato sarnento a quem ele chamou repetidas vezes, pelo meio dos incessantes perdigotos que lhe saltavam da boca, de "o meu presente de aniversário". Enfim... Aparece Michael Landon com o seu extraordinário cabelo (semelhante ao do homem do lixo que eu conhecia mas com o factor champô à mistura) e, porque é um anjo e tem contactos privilegiados, consegue fazer com que um casal de classe média alta adopte o miúdo "especial". Ele lá vai para um grande casarão e tal, conhece o filho biológico do casal que surpreendentemente nem é muito mimado e durante um bom quarto de hora até parece que a coisa vai ter final feliz.

...

Aqui, entre o ranho que me escorria pelo peito até às virilhas, eu já tinha gasto duas embalagens de lenços e começava a achar que não valeria a pena abrir uma terceira.

...

A dada altura, por alguma razão há um fogo na casa e a malta que até ali tinha sido muito dócil e compreensiva não hesita um milésimo de segundo a culpar o deficiente e a correr com ele dali p'ra fora.

...

Tal qual.

...

Portanto, o puto lá regressa para a caixa de cartão, que por esta altura tinha mais SIDA que papel, e volta a passar as noites abraçado ao gato e a desejar que a catrefada de parasitas que a bicheza carrega no pêlo não o cegue durante a noite.

...

Fim.




Bom, é possível que não tenha sido 100% assim mas é assim que eu me lembro do raio do episódio. Ainda hoje, aos 31 anos, não há Natal que não me lembre do puto miserável e do Michael Landon sempre que vejo tristezas na televisão e fico receoso em relação ao futuro.

Espero que estes dramas todos se resolvam e que possamos começar o novo ano da melhor maneira.

Menos inquietação, melhores condições para os trabalhadores e se possível...

... mais saudinha para o meu cabelo, se faz favor.

1 comment:

SketchbookPT said...

Em honra do teu texto dedico-lhe este tema dos "Compota de Geleia".

http://www.youtube.com/watch?v=CzjgMXseMvg&feature=youtu.be