Thursday, August 7, 2014

Um orgulho para o país e um pesadelo para a minha mulher

Sempre tive muito medo de ficar chalupa.

Eu, antes demais, sou uma pessoa que tem muitos medos. 
Fantasmas, grandes alturas e camarões estragados são destaques num vasto leque mas não há pavor que me atormente tanto como o de perder o juízo. Claro que pode haver (e garanto que há) quem diga que sou um trombalazana demente que parece ter levado com bordoada em barda pela moleira adentro em criança e eu admito que há nessas palavras algum fundo de verdade. No entanto, posso não ser um exemplo de clareza e lucidez mas estou longe de ser maluco dos cornos.

Um chalupa, no meu entender, é um indivíduo que partiu para onde não o conseguimos seguir. 
É uma pessoa que não tendo de estar confinada a um espaço fechado e sem arestas cortantes nos eleva o espírito por percebermos que, apesar dos problemas do dia-a-dia, ainda pertencemos a este lado da cerca da sanidade. 

É, por exemplo, um sujeito que parava na zona do Saldanha perto da minha antiga residência. 
Bem vestido, de fatinho escuro, mas que trazia sempre numa mão uma garrafa de espumante que levava frequentemente aos lábios e na outra um pau comprido e ameaçador. O seu ambiente de trabalho, digamos assim, dado que costumava lá estar sempre oito horas por dia com intervalo para almoço, era a entrada de um prédio devoluto junto à avenida Casal Ribeiro. Dizia que o prédio era dele e portanto tinha de guardá-lo. Aparentemente, as suas obrigações passavam também por ameaçar os transeuntes de paulada, sempre aos berros como era seu apanágio, mas, quando estava bem disposto, também não dispensava um pé de dança. Nunca percebi se a garrafa de espumante era sempre a mesma ou se era uma nova todos os dias. Também nunca confirmei se continha mesmo a bebida ou era apenas uma espécie de ritual imbecil: se o levar contínuo do gargalo à boca representava uma qualquer simbologia demoníaca de trompeta do Apocalipse. Sei que a dada altura, este chalupa arranjou um leitor de cassetes e já não se apresentava no spot sem phones nos ouvidos. O acrescento pode não ter saciado a sua fome por porrada indiscriminada a desconhecidos mas, façamos justiça, trouxe ainda mais ginga às suas sessões públicas de kuduro

Confesso que às vezes dava por mim a observar este espectáculo dantesco e a temer terrivelmente pelo futuro. O que quer que o mentecapto tivesse fumado ou ingerido andava por aí e podia arruinar-me o cerebelo com tanta eficácia como o fizera a ele... É por isso que ainda não desisti do sonho de me fazer acompanhar sempre por um provador, para passar a pente fino tudo que estará prestes a passar-me pelo goto. Pensei até em andar sempre com o meu gato debaixo do braço para o efeito (até porque, até ver, o diabólico leitão parece não ter nenhuma outra utilidade) mas acho que, só por si, isso já era um passo largo exactamente para o universo que pretendo evitar.

A verdade é que ao longo da minha vida tenho conhecido muitos chalupas e, por incrível que pareça, sempre que sou forçado a travar diálogo com um deles fico extremamente calmo, como se entrasse numa dimensão paralela e quisesse trazer um pouco de rigor e lógica onde não há nenhuma. É apenas uma forma de me enganar a mim próprio e afastar o medo de "virar a boneca", como se a chalupice fosse contagiosa.

Há cerca de um ano, estava eu num bar a festejar o aniversário da minha mulher quando reparei num homem, lá está, bem vestido e apessoado, a fazer uma estranha dança na outra ponta da sala. Eu sei que estranhas danças em bares não chegam para definir alguém como maluco mas este espaço era distinto e erudito e não se coadunava com o agitar frenético de ossadas e articulações que acontecia defronte de um aparentemente sereno (mas claramente em pânico) empregado de balcão. 

A dada altura, constatando que eu não o estava a imitar na sua apalhaçada performance, a criatura virou-se para mim e gritou:

- Então, tu não danças?!

Eu, porque me encontrava sentado e em grupo, e também porque considero a dança uma actividade inatingível ao corpo perro e inútil que tenho, atirei-lhe, lá está, com muita calma:

- Não.

O bicho, não tendo achado a minha resposta satisfatória, replicou com os olhos esbugalhados:

- Porquê?!

Procurando ignorar os risos nervosos dos meus convivas, respondi uma vez mais:

- Porque não gosto.

Foi aí que, sofrendo uma espécie de epifania satânica, o chalupa se aproximou da minha mesa e, balançando as ancas como nunca, berrou:

- É SÓ ABANAR O CU!

...

Em resposta à eloquente sugestão, decidi parar durante uns segundos.

Pensar na minha existência. De onde tinha vindo, para onde pretendia ir, tudo aquilo que me servia de inspiração e me construía a personalidade. Pensar em todos os degraus que subira e as barreiras que contornara até chegar àquele momento. 

O momento em que um desconhecido, agitando-se como louco, me ordenava aos gritos para "abanar o cu".

Respirei fundo.

Pisquei várias vezes para humedecer os globos oculares e, sempre muito tranquilo, voltei a responder-lhe.

- Eu não gosto de abanar o cu.

...

...

Percebi logo que, pela primeira vez, alguma coisa o tinha deixado estarrecido. 

"Alguém que não gosta de abanar o cu?! Como é possível?!"

Ficou a olhar para mim como se sempre tivesse vivido debaixo de água e alguém o houvesse pescado de repente. Como um chicharro a resfolegar à tona.

"Como era possível não se gostar de abanar o cu?!"

Porque considerei bizarro e tremendamente desconfortável prosseguir com a celebração do dia especial da minha mulher à vista desarmada de um lunático petrificado que não estava a conseguir suportar o choque da minha resposta, lancei uma ou duas palavras para o ar. Para forçá-lo a sair do transe.

Tudo o que consegui foi que ele parasse finalmente de efectuar o seu bailado.
O que para mim já foi uma enorme conquista. 

Com um ar mais sóbrio e "terreno", sussurrou:

- Posso fazer-te uma pergunta?

Mau.

Tremi.

Ainda há quinze segundos falávamos em "abanar" e em "cu" portanto qualquer conversa que se seguisse a esta não podia ser de todo agradável ou interessante.

Mas lá está, tenho medo. 
Medo de assumir perante mim próprio que estou diante de uma pessoa que é biruta e que daqui a uns anos posso ser eu a fazer aquela mesma figura diante de alguém mais são. Um tipo nunca sabe o dia de amanhã e são conhecidos os constituintes na minha vida, sobretudo de origem animal de estimação, que prometem levar-me à loucura a cada momento. 

Mas que pergunta poderia ele fazer?!

Se em vez de abanar o cu preferia abanar outras partes do corpo?
Se apreciava barrar-me com manteiga de amendoim a cada quatro horas?
Se quereria ir com ele à Cruz Quebrada adorar um pombo morto?

O QUÊ, MEU DEUS?! O QUÊ?!

Muito hesitantemente, mas procurando manter a calma, fiz um gesto com a cabeça.

Para que me fizesse a tal pergunta.

E ela lá veio. 

Solene.

...

- Já tens calções p'ró verão?

...

...

...

Foi a última vez que frequentei um bar.

E também só a muito custo voltei a vestir calções.

Deus me livre e guarde de chegar a este ponto mas, e apesar dos meus receios, devo dizer que já estive mais longe. É que sem um braço ou uma perna, com todas as dificuldades que isso traz, um homem ainda funciona. Mas a perguntar se as pessoas "têm calções para o verão" segundos depois de sugerir que "abanem o cu" não se vai longe, digam o que disserem.

Além disso, eu tenho tendência para exagerar tudo. 
Portanto se algum dia me der para ser chalupa devo entrar logo para o Top 3 mundial. Um orgulho para o país e um pesadelo para a minha mulher que certamente me daria guia de marcha na hora.

Mas se esse dia chegar...
E se me apanhar com uma garrafa de espumante e um pau nas mãos...
Prometo que a coisa não fica por ali.

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