Friday, November 8, 2013

Não me sirvam pudins azedos

Os animais...

...

Estou só a lançar o tema para cima da mesa a ver se alguém começa a discussão.

...

É que eu não sei mesmo o que pensar deles...
Quando era miúdo, era obrigado a manter-me afastado por razões de saúde. Não, não padecia da condição psicológica contra-natura de muitos pastores, tinha era mais alergias do que uma prostituta tailandesa e, por causa disso, não me deixavam ter cães nem gatos. Ok, tive tartarugas, peixes, hamsters e periquitos, mas aqueles que não tiveram mortes precoces e traumatizantes revelavam-se uma enorme desilusão de tão aborrecidos que eram. Toda a gente sabe que só os tem quem não pode ter animais de estimação a sério...

Já na altura tinha dúvidas de como devia entender isto da bicharada e hoje esse debate mental (que é, a todos os níveis, perturbador) está a atingir picos de intensa bizarria.

No outro dia, passeava-me eu de cuecas pela cozinha (já não me lembro se ia beber um copo de água ou se estava apenas a ter um dos meus momentos "especiais"), reparei que no lavatório jazia o corpo adormecido de uma pequena sardanisca. Ora, na infância, e apesar de apreciar fauna no geral, apreciava também muitíssimo tudo o que pudesse estar envolvido com barbárie e selvajaria. Era uma criança de contrastes, acho. Eu podia passar a tarde toda, muito fofinho, a coleccionar cromos de animais selvagens ou a ver documentários na televisão, mas bastava chegar a casa e ver uma barata no corredor para exigir a sua cabeça, babando-me e aos guinchos, para junto aos meus pais. Isso ou ir eu mesmo, por minha iniciativa, desfazer-lhe o corpo e profanar-lhe a alma com a ajuda de chinelos, venenos ou lança-chamas (que infelizmente nunca havia na despensa, por mais que procurasse).

Surpreender uma sardanisca no lavatório da cozinha lembrou-me um episódio semelhante ocorrido no passado, há muitos anos atrás. Numa outra casa, num outro tempo, o meu pai aprisionava um réptil em tudo semelhante num coador (porque também estávamos numa cozinha e era o que ele tinha mais à mão) e pedia-me que o matasse o mais rapidamente possível. Olhei à volta e não vi nada que pudesse ser usado para aniquilar a existência de tal micro-inimigo... Não havia aerossol, não havia um rolo de jornal, apenas... Um enorme e maciço MARTELO.

Peguei na ferramenta e aproximei-me do coador, com um brilho estranho nos olhos muito abertos, enquanto ouvia o meu pai berrar (com os olhos não menos abertos):

DEVAGARINHO!

DEVAGARINHO!

DEVAGARINHO!

...

Alcei o martelo atrás da nuca, sempre inexpressivo e focado na minha missão.

...

Desferi o golpe, fazendo um ângulo perfeito com o braço de modo a imprimir mais violência.

...

E PÁS NA CABEÇA DA BICHA!!!

...

Sardanisca espalhada pelo coador.

Pelo fogão da cozinha.

Pelo chão.

Pela parede.

E ainda hoje o meu pai deve andar a tirar bocados da mioleira dela dos dentes também...

...

É por essas e por outras, por me sentir mal pelo que lhe fiz, que comecei a pensar na vida e a reflectir na génese desse meu apetite por sangue e tripas. Se eu gostava de animais, porquê tanto interesse em matá-los, mesmo que fossem nojentos, incomodativos ou desagradáveis à vista? Já na altura, bastava sair à rua para ver dezenas de pessoas com essas mesmas características (então em Arroios...!), por isso não era justo que uns fossem filhos e outros enteados. Com muito raciocínio e avaliação pessoal, fui crescendo, amadurecendo, desenvolvendo a minha maneira de ver o mundo e hoje, apesar de continuar a ter sentimentos díspares para com os bichos, posso dizer que respeito a existência de todos eles e só muito raramente opto por lhes fazer mal. Apenas quando as vozes na minha cabeça me obrigam a... fazer coisas.

Mas estava eu a dizer...
Encontrei a sardanisca no meu lavatório, muito pequena e esverdeada como uma esmeralda ao sol e, por alguma razão, senti por ela um amor profundo. Estava disposto a retirá-la do meu espaço com todo o carinho e languidez que os anos me ensinaram a ter. A minha oportunidade de fazer as pazes com o universo. Com gestos silenciosos e fluídos, como um mestre de tai-chi, retirei um copo de plástico do armário de cima e um pedaço de cartão para servir de base. Olhando a criatura nos olhos, como que querendo hipnotizá-la com a minha alma terna e caridosa, baixei sobre ela, com muito jeitinho, o copo de plástico para que não conseguisse fugir. Milímetro a milímetro, falando-lhe baixinho com doçura, coloquei também a base de cartão que me iria permitir transportá-la até à rua. Depois de cumprir o meu objectivo (e estando certo que, às tantas, a bicha nem sequer se apercebeu do que tinha acabado de acontecer), subi as escadas até ao terraço evitando os olhares gulosos deste presunto ambulante com patas a quem eu chamo de gato e guardo em casa como animal de estimação (a sério, este barriga de mijo está tão balofo que qualquer dia tenho de ir dormir para o sofá e deixar-lhe a minha cama...)

Bom, cheguei ao terraço segurando a base e o copinho com a sardanisca nas mãos, como uma oferta minha à natureza, glorificando a vida e todas as coisas sagradas, e comecei a pensar o que iria afinal fazer com ela. Atirá-la do terceiro andar não me parecia lá muito boa ideia dado o trabalho que tinha acabado de ter e a harmonia que bailava candidamente no meu coração. Deixá-la no mosaico também podia ser espinhoso caso ela decidisse enfiar-se dentro de casa outra vez. Daí, a solução passou por atirá-la para o telhado, apenas separado do meu terraço por uma grade.

Assim...

Coloquei os braços do outro lado do gradeamento...

Lancei à criatura um suave beijo de despedida, cheio de bondade e calor humano...

Retirei o copo de plástico...

Como eu suspeitava, ela não percebeu logo que estava livre...

Dei balanço com a base de cartão...

Atirei-a para a frente...

E depois de ter batido com a cabeça numa telha ficou INERTE E DE PATAS VOLTADAS!!!

...

...

F***-*E!!!

...

...

EU NÃO QUERIA CRER QUE AQUELE TRABALHO TODO TINHA SERVIDO PARA PARTIR O RAIO DO PESCOÇO À CRIATURA!!!

NÃO QUERIA CRER QUE O MUNDO ME IA FAZER ESSA DESFEITA!!!

40 MINUTOS DE MOVIMENTOS BRANDOS E SINUOSOS PARA, EM MENOS DE NADA, TER DE ASSISTIR AO CADÁVER A DESFAZER-SE DURANTE AS SEMANAS SEGUINTES.

EU NÃO QUERIA CRER!!!

...

Recusando-me a aceitar os factos, fiquei agarrado à grade, ainda de roupa interior, a chamar pela sardanisca num tom misto entre o aflito e o incrédulo.

Estamos a falar de um homem de trinta anos, em cuecas, a segurar uma parte da sua casa com ambas as mãos e a suplicar piedosamente pelo corpo inerte de uma sardanisca.

Portanto, um bonito espectáculo para todo e qualquer vizinho que estivesse à janela.

...

Ainda ali passei uns cinco minutos, sem sucesso.

E só depois de lhe atirar duas pedrinhas que saquei de um vaso é que a vi levantar-se e seguir o seu caminho.

Muito provavelmente para morrer em paz, uns metros mais adiante.

Ora, não é fácil admitir que aquela imensa odisseia para não roubar uma vida e respeitar todos os seres vivos acabou comigo de cuecas no terraço, a lapidar a carcaça ainda semi-viva da criatura que jurara proteger. Mas foi isso que se passou e é com a realidade que tenho de coexistir até ao fim dos meus dias. Portanto, se calhar continuo a ser a mesma besta do passado mas mais cínica, menos assumida e mais corrompida pelo mundo dos homens.

Ao menos tenho feito um esforço para decidir se os animais são, ou não são afinal, criaturas que valham a pena. Às vezes tenho a certeza que sim mas outras, começo a achar que não...

Por exemplo, eu reconheço valor aos javalis como indivíduos da floresta (que andam lá nas tocas deles e não chateiam ninguém) e como personagens de banda desenhada do Astérix. Têm com certeza qualidades e outros javalis que gostam muito deles mas, quanto a mim, não os ponham a servir à mesa...

Sim, a servir à mesa.

No outro dia, fui jantar a uma espelunca que já foi restaurante. Ao entrar, achei logo estranho que estivesse um porco selvagem a equilibrar-se nas patas de trás e a trazer a comida aos clientes mas como já vi tanta coisa estranha nesta vida (a maior parte dela no extinto jornal 24 Horas), em situações como estas prefiro calar a boca e seguir em frente. Houve quem dissesse que não se tratava afinal de um javali mas de uma pessoa em tudo semelhante a um suíno do bosque mas mais mal cheiroso e com o focinho mais cheio de gosma, mas não houve consenso em relação ao assunto. Mesmo que não fosse 100% porco, o que é certo é que a mãe fora com certeza violada por um, de quatro num celeiro, e passados nove meses trouxera ao mundo aquele artista. Portanto, até aí estávamos todos de acordo.

Mas sem querer afastar-me demasiado do assunto (e até porque isto é apenas um bizarro aparte), no final do jantar consegui identificar entre os grunhidos da besta que havia pudim para sobremesa. Pedi-lhe um e ele trouxe-mo poucos minutos depois, embalando o pratinho no casco.

À primeira colherada, espargi mais depressa a mixórdia do que levaria a ASAE a fechar o pardieiro e a mandar incinerar o corpo fedorento do empregado. Mais azedo do que aquele ex-pudim só mesmo um dos casacos coloridos do Goucha. Um verdadeiro atentado ao meu bem estar e um insulto a todos os grandes adeptos da nobre arte de realizar e degustar pudins.

Chamei o porco e disse-lhe que a sobremesa não estava em condições, que estava estragada.
O bicho ergueu as orelhas que tinha à frente dos olhos com indignação, raspou o muco das narinas com um fungo prolongado e pegou no prato da sobremesa com desconfiança.

Vi eu e viram as pessoas que estavam comigo, o javali a refundir-se para uma zona mais isolada e encostar o focinho ao doce. Não convencido com o fedor que certamente lhe teria queimado os pêlos das narinas caso fosse um ser humano normal, pegou na minha colher e deitou, ele próprio, um pedaço da gosma amarelecida sob a sua roliça e babujada língua de porcalhão.

Apercebendo-se de vez que dificilmente aquilo poderia estar mais podre e impróprio para consumo, a besta escarrou o pedaço que tinha jogado à boca para o mesmo prato de onde o tinha tirado e arrastou-se já quase em quatro patas de volta para a cozinha.

Irritado como se tivesse sido alvo de insultos...

Sem um pedido de desculpas...

Sem um grunhido arrependido...

Sem outro pudim que eu com toda a certeza recusaria.

...

...

Portanto, isto aconteceu, assim como o outro episódio embaraçoso, e só perpetua a minha dificuldade em concluir se os bichos prestam ou não prestam.

Se são bons ou são maus.

Se devo tratá-los com apreço ou terraplaná-los à base de bombaria.

Vou continuar a pensar no assunto.
E entretanto vou permitir que continuem a aproximar-se de mim, de vez em quando.
Desejando que me convençam com a sua simplicidade. Que me surpreendam com os seus gestos primitivos. E se possível...

... Que não me sirvam pudins azedos.

1 comment:

Nuno Amado said...

AHAHAHHAHAHHAHAH
:D
(troll)

Ainda bem que degustaste o pudim primeiro que eu, assim eu não tive de cuspir!
;)

Abraço