Wednesday, April 11, 2012

A Maternidade Alfredo da Costa e o Jean Jacques

Às vezes sinto que vivo numa qualquer espécie de paraíso...
Parece que morri algures sem dar por isso e que agora ando a flutuar num sítio calmo e agradável, ao som de flautas de Pan. Assim como uma libelinha mas sem a homossexualidade adjacente.

Na rua onde moro há civismo, há educação, há higiene.
Isto para mim é uma grande novidade, principalmente para alguém que veio directamente da Rua da Venezuela em Benfica. Aí, a par de um vizinho bovino que obtinha uma espécie de prazer mórbido em alancar com estuque nos cornos sempre que eu falava um bocadinho mais alto, tive ainda de aturar os marginais da paragem de autocarro, o violador de Telheiras, o biltre que me riscou o carro sem motivo algum e o indiano que passava o dia inteiro sentado numa esplanada manhosa a mamar imperiais, umas atrás das outras, como se não houvesse amanhã, sem apresentar o mínimo sinal de embriaguez. Isto, entre muitas outras personagens e episódios, convém deixar claro. Benfica foi para mim um misto entre circo dos horrores e musical do La Féria: bimbo, aterrador e, muitas vezes, completamente absurdo.

Se aquela rua fosse um programa televisivo seria com certeza apresentado pelo João Baião, numa das suas farpelas pejadas de lantejoulas, com uma bailarina Mamaré de cada lado. Enfim, um espectáculo degradante, diga-se.

Mas era a isto que eu estava habituado e agora, apesar de bastante feliz, não nego que me faz falta uma certa dose de bizarria no meu quotidiano. É assim como uma pitada de piri-piri no café com leite: não é suposto lá estar mas dá pica na mesma.

Antes de me mudar para Benfica, onde vivi dois anos e meio com a minha querida mulher e onde ia arruinando as nossas poupanças num certo restaurante de sushi (mas isso é outra história...), vivi toda a minha vida na casa dos meus pais perto do Arco do Cego. A rua onde habitávamos era, e é, tranquila, mas tinha também a sua generosa dose de cromos, de indigentes e de malta estranha no geral. Aquilo que em Benfica me irritava profundamente (estava farto daquela canalhada toda!) aqui até me divertia... E acabava por ser combustível para piadas e teatros que fazíamos alegremente em família, mais tarde, quando chegávamos a casa.

Ontem, quando vi a notícia de que o governo queria fechar a Maternidade Alfredo da Costa lembrei-me de uma dessas personagens no limiar da insanidade que ainda mora na rua dos meus pais e que, não sei se feliz ou infelizmente, não mete as patas na praceta onde vivo na actualidade. Um indivíduo chamado Jean Jacques.

Na verdade, ninguém tem bem a certeza se ele se chama assim. Sei que um dia olhei para o interior do carro dele e que havia lá um cartãozinho com o nome... Na altura, pareceu-me francês e como provavelmente me esqueci qual era logo depois de o ler, baptizei-o com um dos maiores clichés gauleses no que toca a nomenclaturas... Portanto, ficou Jean Jacques e ficou muito bem.

O Jean Jacques é um indivíduo já com os seus cinquenta anos que anda TODOS OS DIAS DO ANO, faça chuva ou faça sol, de calções.

Ostenta um corte de cabelo à monge franciscano mas sem a parte da careca. Portanto, uma adaptação moderna do penteado que aparenta ter sido feito com a ajuda de uma malga enfiada pela pinha abaixo. No entanto, e convém fazer-se justiça, ele ainda tem cabelo e eu já não tenho muito. Por isso, apesar de maluco nesse aspecto está-me a ganhar.

O Jean Jacques, há vinte anos atrás, tinha três carros... Passado dez anos já só tinha dois. E neste momento já só tem um, reduzido à carroçaria. O homem aprecia bastante arruinar as viaturas enquanto acredita que as está a "arranjar". Como é que ele as chegou a ter em primeiro lugar dado que nunca trabalhou, perguntam vocês? Algo a ver com uma tia e com heranças... Nunca percebi muito bem mas também nunca me interessou.

O método de "arranjo de carros" utilizado por Jean Jacques era um misto de revolucionário e de idiota. A primeira coisa que fazia era arrancar tudo o que fosse plásticos do interior dos automóveis. Não sei se era uma espécie de fobia pessoal ou se ele achava que os plásticos falavam com ele... A verdade é que assim que lhes punha as unhas, era descascar portas e tablier até ficar só metal. Depois, começava a tapar os buracos deixados pela ferrugem (sim, eram viaturas de qualidade) com o material mais resistente e adequado para o efeito que existia no mercado: o BETÃO.

Mas isto era o que se podia considerar, o ofício de Jean Jacques.

Uma vez, a minha mãe, ainda acreditando que existiam vestígios de sanidade naquela cabeça de falso franciscano, pediu-lhe que lhe aplicasse umas escovas novas no limpa pára-brisas do carro dela. E ele, chegando-se à frente com uma voluntariedade ímpar, partiu-lhe aquela merda toda num abrir e fechar de olhos. Era assim que ele operava, e era assim que as pessoas o conheciam.

Nos tempos livres, Jean Jacques fazia sempre o mesmo: fazer surf e coleccionar lixarada. Era um homem de paixões simples mas sempre de uma grande entrega.

Muitas e muitas vezes o vi agarrado a uma prancha a caminho da camioneta que o levaria à Costa da Caparica. Vivia maravilhado com a claridade das dunas, o cheiro a maresia, o embalar quase materno da ondulação. Ele não se coíbia de nos falar deste seu amor até aos nossos ouvidos fazerem sangue... Era chato comá putaça, graças a Deus. Quando nos apanhava na rua começava uma conversa do nada, como se tivessemos acordado de um transe e estivessemos já a meio de uma discussão que durava há horas. Falava-nos dos infinitos benefícios do surf e o bem que lhe fazia à saúde. Quando estava bom tempo era do melhor e quando estava frio ele não se atrapalhava. Levava vestidas duas camisolas de lã grossa por causa das coisas. E a verdade é que nunca o vi constipado.

A prancha, essa, tinha de ser de esferovite. Só material do melhor para este menino.
Caso contrário podia fugir do seu controlo e bater-lhe com força na cabeça... E se há coisa que Jean Jacques não podia arriscar perder era aquilo que ele acreditava ser o seu bom juízo.

Havia quem dissesse que o homem não apanhava camioneta nenhuma, que era tudo mentira. Ia com a prancha até ao jardim da Casa da Moeda e lá ficava sentado num banco a tarde toda a falar com os polegares. Mas lá está, nunca pude comprovar portanto até ver não passam de boatos.

Se o surf tinha este importante papel na sua rotina já recolher lixo dos passeios não era digno de menor afecto. Consegui espreitar um dia pela janela da sua casa e havia tralha até ao tecto. Cartões, electrodomésticos usados, caixas, peças de todos os tamanhos e feitios... havia de tudo naquele barraco menos uma limpeza semanal. Muitas e muitas vezes vinha ele da feira da ladra carregado de computadores velhos e de livralhada, coisas que ele inventava para gastar o dinheiro. Gostava de falar das suas invenções e das suas ideias inovadoras. Ideias essas que eram invariavelmente um suceder alucinante de palhaçada.

Um dia, apareceu na rua com a cara coberta de natas a pingar para o chão. Aproximou-se orgulhosamente dos meus pais a dizer que aquilo fazia muito bem à pele, que era uma espécie de projecto que ele estava a desenvolver. Era com este tipo de assuntos que ele gostava de abordar as pessoas e deixá-las num misto de desconforto e pânico.

Outra altura houve em que Jean Jacques apregoava as virtudes de "andar" na saúde humana. Tinha lido uma qualquer entrevista com a Rosa Mota (sim, porque nada melhor do que uma criatura que se assemelha a um esqueleto ambulante para servir de guru da "boa vida") e que, de acordo com as suas contas, todas as pessoas deviam andar cerca de 18 horas por dia. E batia-se com esta estupidez como se a sua existência dependesse disso... Abençoado.

Ora, quando vi na televisão que tencionam fechar a mais emblemática maternidade lisboeta, e quem sabe do país, o meu pensamento imediato foi: "MAS COMO É QUE O JEAN JACQUES CHEGOU AO GOVERNO?!"

Porque isto cheira-me a ideia genial lá do bicho.

Ou dele ou de indivíduos do mesmo calibre...
Mas enquanto cidadão não escondo o meu desconforto em ser governado por gente que na intimidade enche a cara com natas, se lança ao mar com pranchas de esferovite e emplastra chaços com cimento... Se é para perdermos de vez a identidade nacional então mais vale fazer algo ainda mais revolucionário como prender de vez governantes criminosos como Fátima Felgueiras, Valentim Loureiro ou Isaltino Morais... Isso sim, era caso para pararmos tudo e chegarmos à conclusão que estávamos a deixar de ser Portugal. Agora fechar o raio da Maternidade, às tantas nem a besta do Jean Jacques nos seus sonhos mais mórbidos se lembraria de tal coisa.

Neste momento, vivo num sítio demasiado normal mas não nego que sinto falta de pequenas idiossincrasias inofensivas... Não encontro idiotas na minha rua mas basta ligar a televisão e lá estão eles. A decidir por mim e pelos meus, muitas vezes contrariamente àquilo que prometeram.

Assim, antes o Jean Jacques que não fazia mal a ninguém...
Excepto à minha mãe que teve de comprar uns limpa pára-brisas novos.

5 comments:

ana oliveira said...

Hahahahahahahahha!!! Verdade filho! TUDO, TUDINHO VERDADE!!!!!! Eu é que sei o quanto me enfureci quando ele me mostrou as escovas ( novas ) mas partidas...apenas te esqueceste de dizer...que ele queria ir buscar cola tudo para as " arranjar "....e os livros de informática ultrapassados que ele passeia? e a filosofia sobre os americanos? e? e? e?....ficaram a faltar muuuitas coisas...hahahaha

André Oliveira said...

Há sempre muito mais coisas para contar mas já há quem se queixe que escrevo testamentos... :P

máriomota said...

Há Jean Jacques, e jean jacques… O primeiro; ainda vos colava escovas do limpa-vidros com “cola tudo”. O segundo; como mais inteligente que é, (pelo menos faz parte do governo) era bem capaz de utilizar para colar as escovas, o cimento que o primeiro usava para encobrir as ferrugens.

E mais André!!!… para que presta a Maternidade Alfredo da Costa se o segundo já nasceu?
Ah… e se foi lá, até é bem feito porque as "deficiências" são para serem tratadas à nascença… Se não foi, é bem feito à mesma porque "deficiência" é coisa que governa este País…

Sabes que com esta crise é a dar porrada no SNS um dos meios para sustentar as clinicas privadas, depois ainda há o património da MAC (edifício) já deve estar encaminhado (veremos?).

Boa
abraço

João Vasco Leal said...

Hehehehe, valha-nos estas personagens mesmo.

Agora... eu não queria ser este gajo mas, acho que querias dizer Isaltino Morais.

Em relação à MAC, sem querer de maneira nenhuma diminuir o valor histórico que tem, a verdade é que a maioria das pessoas mora na periferia de Lisboa e que é muito complicado levar uma ambulância no meio do transito de hora de ponta com uma grávida lá dentro. Ficam as crianças já com o chamado "road rage" antes de nascer. Além de que as condições de toda a estrutura estão altamente desactualizadas e por isso estão a tranferir os actuais utentes para outros estabelecimentos novos, alguns até mais perto das suas residências e bem melhor equipados.

Não estou a desculpar ninguém, apenas a acrescentar alguma informação que vem de quem trabalha lá mesmo e como estamos fartinhos de saber, as notícias... enfim...

A última coisa que queria comentar é um pouco no sentido do que disse o Mário também. Porque a minha mãe trabalha na saúde pública há mais de 30 anos e conta-me histórias incriveis de má gestão, inclusivé edificios inteiros que pertencem ao estado e que estão vazios e que não recuperam, não vendem, não alugam, nada... simpesmente deixam apodrecer...
é triste.

Mas, tu és um gajo com piada e isso é o que interessa neste blog.

grande abraço

André Oliveira said...

Obrigado pela dica do Isaltino, já corrigi. Quanto à Maternidade, em Portugal prolifera a política do encerrar, do acabar, do botar abaixo. Como sabes, vim há uns dias de Madrid e não há uma fachada histórica que esteja destruída, um edifício antigo que esteja devoluto, um traçado arquitectónico que esteja em ruínas. Não estou a defender os espanhóis mas parece-me que por lá honram o passado e protegem-no (se calhar daí terem o estigma, que até me parece bem aplicado, de serem um pouco chauvinistas). No nosso país, como tu bem sabes, as coisas são feitas em cima do joelho e a despachar. A maternidade está desactualizada vamos fechar e pronto... de um momento para o outro já não faz sentido as pessoas nascerem ali. Cito o Mário quando diz isto: "Sabes que com esta crise é a dar porrada no SNS um dos meios para sustentar as clinicas privadas, depois ainda há o património da MAC (edifício) já deve estar encaminhado (veremos?)."

Para mim, está tudo dito!

E não me voltes a obrigar a falar a sério neste cantinho de estupidez! :D